Ars aedificandi
Serenae spectantibus horae
INTRODUÇÃO
Caso ainda houvesse dúvida de que se adentra em um prédio especial, logo na portaria do Edifício Seabra, as inscrições latinas copiadas acima já informariam:
Arte de edificar. Serena hora de observar.
De fato, mais do que um eventual passante, o visitante é chamado desde suas fachadas a observar os detalhes que o compõe, resultado do desejo dos proprietários em encomendar um prédio ímpar.
Afinal, as características dos imóveis que se utilizavam da proposta historicista, naquele período, dificilmente alcançavam tamanha altura, ou número de pavimentos.
Os elevadores e o concreto armado, que possibilitaram a verticalização do Rio de Janeiro, começaram a ser produzidos no país, por volta da década de 1920, e, portanto, as edificações em altura, até ali, são raras.
Coincidentemente, o início do Século XX é marcada, em termos arquitetônicos, pela escola historicista, isto é, a que ia buscar na História, a inspiração para a composição de fachadas e coberturas, marcadamente com influência da renascença italiana e francesa, conforme indica Yves Bruand:
“Depois da Primeira Guerra Mundial, a influência francesa foi reforçada pela presença, no Rio, de vários arquitetos vindos da França. O primeiro prédio de apartamentos construído na cidade foi projeto da firma Viret e Marmorat; segundo Lucio Costa, que conheceu o edifício, podia-se dizer que ele tinha sido transportado diretamente de Paris” (Bruand, 2002, pág.37).
As imagens acima mostram prédios contemporâneos ao Seabra, também erguidos no bairro do Flamengo. Do canto superior esquerdo, em sentido horário. Praia do Flamengo, 116. Rua Almte. Tamandaré, 77. Praia do Flamengo, 314 e Rua Marquês de Abrantes, com Praia de Botafogo, 148.
Desta forma, os primeiros “arranha-céus” seguiam a influência francesa “aproveitando a tradição implantada pela missão francesa de 1816, esta havia se fortalecido após um ligeiro eclipse nos anos 1860-1900, quando a Renascença italiana e os palácios romanos do século XVII eram fonte de inspiração muito frequente” (Bruand, op cit).
O Seabra, que por sinal tem por nome oficial Edifício Flamengo, seguiu por outra vertente arquitetônica, como se verá oportunamente, inserindo-se na gama dos “estilos medievais e pitorescos”, conforme classifica Bruand, contudo, esse autor considera que o estilo foi principalmente aplicado em igrejas, que lançaram mão, amplamente dos cânones góticos, e raramente em edificações residenciais.
Mais raras ainda são as concepções oriundas da arquitetura românica, como as que encontramos no Ed. Seabra.
Igreja de N. D. de Poitiers – França
De acordo com o Guia do Patrimônio Cultural Carioca, o Edifício “ganhou grande destaque na paisagem do parque à sua frente. Isso se deu por força de seus volumes, que apresentam movimento e ritmo na fachada cinza com esquadrias e adornos em branco. Destaca-se ainda o embasamento em pedra, a entrada principal com arco trabalhado em estuque e a rica serralheria dos portões de acesso e dos lampiões. Projeto de 1931, de autoria de Mario Vodret.” (PCRJ, 2014, pág.131)
O Decreto Municipal que o tombou acrescenta ainda que “consiste em marco referencial no conjunto edificado deste logradouro (Praia do Flamengo), de excepcional relevância paisagística para a Cidade do Rio de Janeiro, considerando que o referido prédio é importante exemplo do ecletismo na arquitetura, manifestação típica e recorrente no Rio de Janeiro nas primeiras décadas deste século” (XX), assinalando a seguir o Processo 12/004.049, valendo observar que enquanto o citado Guia apresenta o edifício ocupando dois endereços – Praia do Flamengo e Rua Ferreira Viana, o Decreto assinala apenas o número 88 da Praia do Flamengo.
Acrescente-se, ainda, que inclui no tombamento os “elementos característicos originais, tais como:
“I – exterior: volumetria, cobertura, elementos arquitetônicos originais, materiais de revestimento, ornatos, esquadrias de ferro e madeira, cantaria, serralheria, gradis, luminárias e todos os demais elementos característicos que compõem as fachadas, como balcões e varandas, inclusive as internas, seus gradis, revestimentos de pisos e parede e luminárias.
II – Interior: materiais de acabamento, ornatos, afrescos, gradis, guarda-corpos, esquadrias, pinturas murais, luminárias e os demais elementos que compõem os ambientes das portarias e saguões; escadas e “halls” de acesso aos apartamentos em todos os pavimentos, elevadores e seus acessórios, caixas de correspondências de uso comum da edificação.” (PCRJ – 1995)
HISTÓRICO DO PRÉDIO
O Edifício 88, da Praia do Flamengo, tem seu início com a decisão de um rico empresário português, radicado no Rio de Janeiro, Gervásio dos Santos Seabra em construir um prédio de apartamentos. Sendo ele casado com uma cidadã italiana, Sra. Assunta Grimaldi, deve ter sido influenciado a convidar Mario Vodret, “jovem arquiteto italiano verdadeiramente notável pela cultura excepcional e pelo talento criador” para realizar o projeto, cuja obra teve sua inauguração noticiada pelo jornal Monitor Mercantil em 2 de janeiro de 1932. (livro Ana Aragão).
Vodret, entretanto já detinha diversos projetos no Rio de Janeiro, tão diversos quanto a residência de Henrique Lage, outro empresário, também casado com uma cidadã italiana, a cantora lírica Gabriella Besanzoni, atualmente sede do conhecido Parque Lage, projetado em 1927, ou o Grande Templo, do Centro da Comunidade Israelita, de1928 (Falbel, pág. 131).
No site do Grande Templo, pode-se colher as seguintes informações:
“O projeto, de 1928, foi elaborado pelo arquiteto italiano não-judeu, Mario Vodret, que venceu um concurso organizado pela comunidade judaica do Rio.
O arquiteto teria se inspirado na Grande Sinagoga de Trieste e o projeto guarda alguma semelhança com a Grande Sinagoga de Florença.
O projeto original foi ainda adaptado pelo arquiteto judeu, igualmente italiano, Guido Levy.” (https://www.grandetemplorj.com.br/)
Como era comum no período, Vodred não seguia um mesmo paradigma histórico para seus projetos, pois enquanto o Palacete de Lage se inspira na Renascença Italiana, o Templo judaico se baseia, em verdade, na arquitetura bizantina, embora alguns elementos de sua fachada possam ter servido de modelo para o projeto do Edifício, se observarmos a ilustração abaixo.
Sendo assim, é razoável que o Edifício Flamengo, ou modernamente chamado Seabra, fosse beber na fonte medieval, caso tenha sido essa a solicitação do cliente, ou, mais provavelmente, de sua esposa italiana, e reservasse para os empreendedores os três últimos pavimentos, dos doze que compõem o edifício, servidos por um elevador exclusivo.
Aragão apresenta uma completa descrição do edifício, tanto de sua fachada, como do hall e mesmo dos apartamentos, que contou com excelentes fontes de informação primária:
FACHADAS:
“Seu entablamento divide os andares em arcos plenos, sendo decorado com colunas estilo dórico, com tímpanos e nas encostas dos arcos existem motivos alegóricos e mitológicos. Há um contraste entre a base do edifício em pedras pretas e o restante do prédio embolsado com pó de granito e colunas e colunatas pintadas em marfim. As paredes (...) foram feitas com espessura de 50e 60cm (...) (o que) permitiu criar uma forma de encaixe, embutindo, caixas de persianas...” (Ana Aragão).
HALL:
“O hall do edifício divide-se em duas alas com respectivas escadarias em mármore italiano, com amplos e largos degraus (...) aduelas intradorso, com piso de mármores de várias qualidades combinando com cada ambiente (mármores da entrada principal em giallo de Siena (amarelo da Itália), saindo das paredes revestidas de mármore preto que veio da Bélgica e mármore rosa-do-monte de Portugal). As portas de entrada do prédio são duplas, em ferro batido, ornadas com rendilhados no estilo florense e as internas em madeira de lei. Os tetos apainelados com desenhos decorativos e emoldurados. Nas paredes desenhos geométricos com aplicações em ouro...” (Ana Aragão)
Como inovações tecnológicas, Aragão informa que o prédio terá sido o primeiro da cidade a incluir um incinerador de lixo, equipado também com rádio e telefonia, além de iluminação automática, minuteria e relógio elétrico no hall.
Recentemente, a Fachada voltada para a Praia do Flamengo foi restaurada, e as obras acompanhadas pelo IRPH, tendo em vista o tombamento municipal, acima referido.
Bibliografia.
Aragão, Ana
Bruand, Yves – “Arquitetura Contemporânea no Brasil”, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002.
PCRJ - Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - “Guia do Patrimônio Cultural Carioca, Rio de Janeiro, 2014.
Diário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro – “Decreto de Tombamento 14089, 31/07/1995”. Rio de Janeiro, 1995.
Falbel, Anat - “O domo e o edifício sinagogal: entre a unidade da fé e a afirmação da nacionalidade”, Revista 12, UNICAMP, Campinas, sd/
Foto principal: Osmar Carioca 2009
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