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  • Leandro Campos

PRESERVAÇÃO E HISTÓRIA NO MERCADO MUNICIPAL DE DIAMANTINA

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO


LEANDRO AUGUSTO FERREIRA CAMPOS


A CAIXA VAZIA:

PRESERVAÇÃO E HISTÓRIA NO MERCADO MUNICIPAL DE DIAMANTINA


Salvador

2009


LEANDRO AUGUSTO FERREIRA CAMPOS


A CAIXA VAZIA:

PRESERVAÇÃO E HISTÓRIA NO MERCADO MUNICIPAL DE DIAMANTINA


Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura,

Universidade Federal da Bahia, Área de Concentração

Conservação e Restauro, como requisito parcial para

obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profa. Dr. Odete Dourado Silva


Salvador

2009



AGRADECIMENTOS

À minha mãe Nilda e a meu pai, Geraldo, que promoveram um ambiente

familiar saudável e rico de afeto, base sólida essencial para a minha existência;

ao meu irmão mais velho do que eu, Christian, cuja curiosidade, inquietude e generosidade ao longo da nossa infância e adolescência, me motivaram a construir o meu repertório básico; a minha irmã Nathalie, pelo amor incondicional e apoio irrestrito;

aos amigos de Belo Horizonte, Bruno Martins, Rodrigo Tavares, Pedro Dolabela, Marcus Vinícius, Ricardo Brasileiro, Bruno Souza, Fernando Maculan, Cláudio Coscarelli, Daniela Soares, José Ignácio, Pedro Morais, que embora estivessem distantes durante a elaboração dessa dissertação, têm grande importância na minha formação e visão de mundo, construída ao longo dos anos, em inúmeras conversas sobre temas caros à nossa vivência;

a minha orientadora, Odete Dourado, pela confiança que depositou desde o início de nossas conversas, pela atenção que sempre dispensou na orientação do trabalho e pelo entusiasmo que o recebeu ao final;

a banca examinadora, Eugênio de Ávila Lins e Lysie dos Reis Oliveira pela dedicação e cuidado na leitura do texto, e pelas observações e sugestões pertinentes apresentadas na defesa;

a Márcia Sant´Anna, pela sugestão de tema lançado na disciplina que ministrou no XXIII CECRE, e pela atenção dispensada em me receber no início do desenvolvimento da pesquisa e;

ao Rodrigo Baeta e à Juliana Nery pela receptividade e amizade fervorosa com que sempre me acolheram em Salvador;

aos colegas e amigos do XXIII CECRE, especialmente Milena Migoto, Paulo Farsette Sandra Corrêa, José Rodrigues, Nádia Mendes e Honório Nicholls, pela amizade e pelo impulso necessário para o início dessa jornada;

ao João Queiroz, Beatriz Longo e Monique Sanches, pela amizade e convívio no período que vivi em Salvador;

a Danilo Matoso, pela amizade, incentivo e profícua interlocução em Brasília, durante o duro e solitário período de escrita da dissertação;

aos colegas e amigos do Monumenta de Brasília, Jonatas Nunes, David Melo, Roberto Alonso, Henry Cury, Fernando Madeira, Juliana Silva, Estevan Pardi, Hailon Gomide, Robson Almeida, Sylvio Farias, Marcos Zimbres, Marcus Midlej, Fabiana Simões, Maria Amélia, karina Barbosa, Mônica Silva, Genoveva Moura, Veruska Moreira, Rodrigo Fávero pela amizade e incentivo na escrita da dissertação;

Aos amigos de Brasília, Maurício Goulart e Gigliola Mendes, Elisa Teixeira, Juliana Macedo, Fernanda Viana, Márcia Rocha, cuja amizade e convivência foram fundamentais para a escrita da dissertação.


RESUMO

A presente dissertação se insere no tema geral da crítica à apropriação cenográfica contemporânea do patrimônio cultural edificado. Segundo ela, as intervenções não deveriam se fixar ao apelo visual imediato dos objetos, mas aos conteúdos sociais, simbólicos e afetivos que carregam, direcionando-os ao consumo dos sujeitos que teriam esses bens culturais como fonte de história e identidade.

Diante desse quadro geral apontado, com o objetivo de desvelar o potencial contido nas indicações propostas de apropriação do patrimônio cultural, particularmente a fortuna dos conteúdos históricos e sociais vinculados aos bens culturais, nosso trabalho propõe examinar a ocorrência e o alcance destes conteúdos relacionados a um objeto arquitetônico protegido em nível federal, para a partir daí, avaliar as ações de preservação empreendidas pelo IPHAN em relação a esse objeto.

Para tanto, no campo da história utilizou-se como referencial teórico a noção de documento/monumento, desenvolvida por Jaques Le Goff, e no campo da arquitetura, a tese de que a arquitetura não é autônoma, reflete acontecimentos históricos da cultura e responde a exigências de uma época, idéias desenvolvidas por Aldo Rossi.

O estudo de caso escolhido foi o Mercado Municipal de Diamantina, exemplar de arquitetura popular, implantado no Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de Diamantina, tombado pelo IPHAN em 1938.

Na primeira parte da dissertação, apresentamos os resultados da pesquisa histórica, baseada em estudos recentes, relatos do século XVIII e documentos cartográficos históricos que evidenciam as peculiaridades do território mineiro e de seu abastecimento, que ensejou o estabelecimento de atividades produtivas e comerciais peculiares com reflexos no estabelecimento de caminhos e estruturas de apoio, em relação às quais, a ocorrência do Mercado de Diamantina se relaciona. A pesquisa iconográfica e relatos de viajantes do século XIX permitiram a qualificação dos caminhos e estruturas arquitetônicas existentes e a caracterização do tipo arquitetônico em relação ao qual o mercado é um exemplar, o rancho.

A segunda parte da dissertação trata da trajetória do mercado ao longo de sua história. Baseados em fontes primárias do século XIX e XX (artigos de jornais e legislações) e estudos históricos regionalizados, apresentamos informações e análises sobre a origem do mercado, o papel que desempenhou na cidade, a ocorrência de estruturas similares, sua configuração arquitetônica e a relação da população com o edifício ao longo de sua história até o tombamento da cidade em 1938. Finalmente, no último capítulo, baseada em farta documentação primária dos arquivos do IPHAN, é analisada a trajetória de preservação do edifício entre 1938 e 2009, tendo a perspectiva das informações sistematizadas nos capítulos anteriores.


LISTA DE FIGURAS

Figura 01 Vista do Mercado Municipal de Diamantina..............................................25

Figura 02 Trecho do Mapa abrangendo a região entre o alto Rio Doce (Ribeirão do

Carmo), Rio das Velhas e Rio Paraopeba..................................................................39

Figura 03 Trecho do Mapa da demarcação das terras que produz diamantes.............43

Figura 04 Remanescentes dos muros de contenções de tropas...................................54

Figura 05 Trecho da Carta corográphica da parte da Capitania de S. Paulo que

confina com a Capitania de Minas Geraes......................................................................62

Figura 06 Trecho do Mapa de toda a extenção da Campanha da Princeza, feixada pelo Rio Grande, e pelos registros, que limitão a Capitania de Minas............................64

Figura 07 Trecho da Planta geográfica do continente que corre da Bahia de Todos os Santos até a Capitania do Espírito Santo e da costa até o Rio São Francisco.............68

Figura 08 Trecho do Mapa do território da Capitania da Bahia, compreendido entre o Rio S. Francisco, Rio Verde Grande e o riacho chamado Gavião.......................69

Figura 09 Trecho da parte das cartas topográficas da Capitania do Rio de Janeiro, mandadas tirar pelo Ilmo. e Exmo. Sr. Conde da Cunha.................................................78

Figura 10 Trecho da Carta topographica das terras entremeyas do sertão e destrito do Serro do Frio..................................................................................................82 Figura 11 Porto da Estrela junto ao Rio Inhomirim....................................................91

Figura 12 Imagem romântica do Porto da Estrela.......................................................92

Figura 13 Panorâmica dos campos de Mogi das Cruzes ............................................95

Figura 14 Trecho calçado da subida da Serra da Estrela.............................................97

Figura 15 Trecho da estrada pavimentada de Santos a São Paulo na Serra de

Cubatão............................................................................................................................99

Figura 16 Ponte sobre o Rio Paraibuna.....................................................................101

Figura 17 Ponte coberta próximo a Frechal no sopé da Serra de Teresópolis...........102

Figura 18 Detalhe do rancho do Porto da Estrela com sobrado ao fundo.................106 Figura 19 Vista do arraial que se desenvolveu junto ao Porto da Estrela................111

Figura 20 Planta dos vestígios do atracadouro de pedra do Porto da Estrela...........112

Figura 21 Planta de Situação da Vila da Estrela.......................................................112

Figura 22 Vista de rancho e da balsa na travessia do Paraíba...................................116

Figura 23 Igreja N. Sra. da Conceição e Casa do Registro do Paraíba.....................118

Figura 24 Telheiro e casas junto ao rio próximos ao Registro do Paraíba................119

Figura 25 Portal de acesso ao Caravanserai Aksarai................................................128 Figura 26 Pátio interno do Caravanserai Aksarai.....................................................128

Figura 27 Aspecto de um rancho ou telheiro.............................................................134

Figura 28 Rancho no caminho do Porto da Estrela para Minas Gerais.....................135

Figura 29 Panorâmica da Fazenda da Mandioca.......................................................137

Figura 30 Panorâmica Fazenda do Alferes Monteiro................................................139

Figura 31 Interior do Rancho dos Mineiros...............................................................142

Figura 32 Interior de rancho em uma fazenda próxima ao Porto da Estrela.............143 Figura 33 Interior Rancho da Fazenda dos Negros...................................................145

Figura 34 Interior do Rancho da Fazenda Olaria......................................................147

Figura 35 Aspecto venda em Santíssimo...................................................................152

Figura 36 Aspecto venda em Padeiro........................................................................156

Figura 37 Mapa de Vila Rica....................................................................................160

Figura 38 Formação urbana do Arraial do Tejuco segundo Sylvio de

Vasconcellos..................................................................................................................162

Figura 39 Rancho próximo à Igreja de São Francisco de Assis em Ouro

Preto...............................................................................................................................164

Figura 40 Rancho próximo à Matriz de Santo Antônio em Diamantina...................165

Figura 41 Pequena Planta do Arraial do Tejuco – 1774............................................190

Figura 42 Sítio Histórico de Diamantina...................................................................202

Figura 43 Vista do mercado à partir da subida da Rua do Burgalhau.......................203 Figura 44 Vista do Largo do mercado......................................................................203 Figura 45 Aspecto do piso em seixos rolados no galpão do mercado.......................205

Figura 46 Configuração do apoio para arreios nos esteios do mercado....................206

Figura 47 Utilização atual do apoio para arreios nos esteios do mercado em dia de

feira................................................................................................................................206

Figura 48 Vista de trecho da estrutura do telhado sobre o galpão do mercado.........208

Figura 49 Vista de um trecho da fachada sul.............................................................208

Figura 50 Esteio localizado na fachada com superfície irregular..............................209

Figura 51 Vista da arcada interna do mercado..........................................................209

Figura 52 Vista da chegada da subida do Burgalhau.................................................212

Figura 53 Vista da conjugação volumétrica entre o sobrado e o rancho...................212

Figura 54 Desenhos Arquitetônicos das plantas do Mercado de Diamantina...........213

Figura 55 Desenhos Arquitetônicos dos cortes do Mercado de Diamantina.............214

Figura 56 Desenho Arquitetônico da cobertura do Mercado de Diamantina............216

Figura 57 Desenhos Arquitetônicos das fachadas do Mercado de Diamantina........217

Figura 58 Vista Geral do Mercado com tropas no Largo do Guaicuí.......................240 Figura 59 Vista do interior do mercado com carga de tropeiros...............................240 Figura 60 Vista do interior do mercado próximo à balança......................................242

Figura 61 Vista do interior do mercado com vários fogos de cozinha tropeira.........246

Figura 62 Tropeiro junto ao Mercado de Diamantina...............................................263

Figura 63 Aspecto geral da obra................................................................................269 Figura 64 Aspecto geral da obra e situação do pé de um dos esteios........................270

Figura 65 Trabalhos de recuperação dos baldrames e dos burros.............................271

Figura 66 Aspecto de Restauração vista do limite do terrapleno..............................272 Figura 67 Aspecto do muro de arrimo levantado......................................................272

Figura 68 Vista do volume vedado com indicação de mudanças que se fariam no

desenho da cobertura.....................................................................................................274 Figura 69 Vista do mercado.......................................................................................274

Figura 70 Volume vedado com agravamento dos sinais de desestabilização...........279

Figura 71 Vista dos trabalhos de reconfiguração do telhado no trecho onde ocorreu a reinserção do arco e a demolição do volume vedado...........................279

Figura 72 Aspecto do volume vedado após sua reconstrução...................................280

Figura 73 Aspecto do piso do galpão em lajes após as obras....................................283

Figura 74 Aspecto do piso em seixos rolados no galpão do mercado.......................283

Figura 75 Vista parcial mercado desde Praça Barão do Guaicuí..............................288

Figura 76 Vista da Banca no interior do mercado.....................................................289

Figura 77 Aspecto de uma das gaiolas ou bancas para guarda de produtos..............289

Figura 78 Estudo de banca para o mercado elaborado pelo Arquiteto da

Diretoria do SPHAN Sérgio Pôrto ................................................................................292

Figura 79 Vista da Fachada Sul em que se vê selamento de uma das cumieiras......295

Figura 80 Aspecto geral da estrutura do telhado.......................................................295

Figura 81 Vista do mercado com interferência visual das bancas na fachada...........296

Figura 82 Vista interior do mercado com ocupação desordenada.............................296

Figura 83 Vista interna do mercado com interferências de caixa d’água .................297 Figura 84 Volume vedado em mal estado de conservação........................................297

Figura 85 Vista da Praça Barão de Guaicuí com muares e veículos.........................303

Figura 86 Vista do Mercado com muares descarregados e cargas ...........................305

Figura 87 Vista do Mercado com presença de muares descarregados......................305

Figura 88 Cangalhas no piso do mercado indício de uso por tropeiros.....................307

Figura 89 Elevação do projeto de banca para o mercado..........................................312

Figura 90 Estudo de ocupação do mercado no pavimento inferior...........................313

Figura 91 Estudo de ocupação do mercado no pavimento térreo..............................314

Figura 92 Vista Geral do canteiro de obras...............................................................320

Figura 93 Aspecto das caixas d’água do mercado.....................................................320 Figura 94 Aspecto geral do mercado após as obras...................................................329

Figura 95 Vista Geral do Largo do Guaicuí..............................................................329 Figura 96 Muar carregado - atração turística na inauguração...................................331

LISTA DE TABELAS

Tabela 01 População de Minas Gerais século XVIII e XIX.............................. 38

Tabela 02 Arrecadação Tributária em Minas Gerais – Século XVIII............. 114

Tabela 03 População de Diamantina e Distritos da cidade............................. 173

Tabela 04 Boletim Comercial......................................................................... 186

Tabela 05 Tabela K - Taxas do Mercado Municipal....................................... 195

Tabela 06 Mercado.......................................................................................... 198


LISTA DE QUADROS

Quadro 01 Cronologia da criação de vilas em Minas Gerais.....................................36


SIGLAS E ABREVIATURAS

A13SR Arquivo da 13a SR/IPHAN/ Belo Horizonte

ABN Anais da Biblioteca Nacional/ Rio de Janeiro

ACMD - Arquivo da Câmara Municipal de Diamantina/ Diamantina

a/d. autoria desconhecida

AGPM Arquivo Geral Programa Monumenta/ Brasília

AHCMS Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Serro/ Serro

AHEX Arquivo Histórico do Exército/ Rio de Janeiro

AHU Arquivo Histórico Ultramarino/ Lisboa

AIEPHA Arquivo do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA-MG/ Belo Horizonte

AN Arquivo Nacional/ Rio de Janeiro

ANS Arquivo Noronha Santos – IPHAN/ Rio de Janeiro

APM Arquivo Público Mineiro/ Belo Horizonte

APACF Arquivo Particular Antônio Carlos Fernandes/ Diamantina

BAT Biblioteca Antônio Torres – IPHAN/ Diamantina

BN Biblioteca Nacional/ Rio de Janeiro

CNRC Centro Nacional de Referências Culturais

CRCH Centro de Referência em Cartografia Histórica/ Diamantina

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

MI Mapoteca do Itamarati/ Rio de Janeiro

PCH Plano de Cidades Históricas

RAPM Revista Arquivo Público Mineiro

R.M.F.A Rodrigo Melo Franco de Andrade

SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional



1. INTRODUÇÃO


A presente dissertação teve como ‘ponto de partida’ ‘a questão’ da relação entre patrimônio material e imaterial nas ações de preservação do patrimônio cultural edificado no Brasil. Como definir este problema, como ele se manifesta e quais possibilidades haveria para melhorar essa relação entre o patrimônio material e o imaterial nas intervenções, foram as principais indagações que impulsionaram o início dos estudos que resultaram na presente dissertação.

As primeiras revisões bibliográficas empreendidas para a definição do ‘problema’ que esta dissertação busca enfrentar indicam que a crítica especializada à apropriação cenográfica do patrimônio cultural edificado é um dos principais temas relacionado à questão da relação entre o patrimônio material e imaterial nas ações de preservação. Embora não tenhamos realizado a genealogia desta crítica, pelo menos desde os anos 80 do século XX, com o livro clássico de Choay (2001), A alegoria do Patrimônio, a apropriação cenográfica do patrimônio cultural edificado é condenada pelos estudiosos do patrimônio cultural em escala global.¹

A crítica entende por apropriação cenográfica do patrimônio cultural, as ações de preservação que se fixam na materialidade dos objetos com vistas ao seu apelo visual imediato, que pasteurizam o patrimônio ao tratá-lo como uma mercadoria a ser consumida por um público alvo de visitantes eventuais. Entre os diversos expedientes utilizados para a consecução deste fim, identificados pela crítica, destacam-se: a iluminação cênica dos monumentos, a recuperação apenas de fachadas, o incentivo ao uso comercial ligado ao turismo, o tratamento uniforme de calçadas e a instalação de mobiliário urbano padronizado; expedientes que Choay (2001) denomina de “procedimentos de embalagem” para o embelezamento e criação de uma imagem midiática da cidade patrimonial com o objetivo de promover o consumo cultural pelos visitantes.

Chuva (1998) defende que as intervenções não deveriam se fixar apenas ao apelo visual dos objetos, mas também aos conteúdos sociais, simbólicos e afetivos que eles carregam, com o objetivo de direcionar esses conteúdos aos sujeitos que teriam esses bens culturais como fonte de história e identidade.² Portanto, atuar segundo o que propõe Chuva (1998) implica que as ações de intervenção deveriam ser precedidas de identificação e documentação profunda do patrimônio cultural edificado, para que fossem extraídas informações altamente socializáveis que pudessem provocar curiosidades, perguntas e hipóteses, o que possibilitaria uma integração dos indivíduos com os contextos aos quais se vinculam, o que não é realizado nas intervenções baseadas na apropriação cenográfica do patrimônio cultural.³

Entendemos que a proposição acertada de Chuva (1998), embora tenha sido elaborada antes da consolidação do uso do termo patrimônio imaterial ⁴ se refere ao “problema” da relação entre patrimônio material e imaterial nas ações de preservação do patrimônio cultural edificado apontado anteriormente. Nesse sentido, os conteúdos sociais, simbólicos e afetivos que os objetos patrimoniais carregam a que se refere a autora, constituem-se como o patrimônio imaterial daquele patrimônio material, ou seja, trata-se do mesmo problema, com denominação hodierna.


No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, órgão federal criado em 1937, define em alguma medida a norma de preservação no país.


Por esta razão, os trabalhos críticos a que nos referimos, que se traduz em um debate teórico-metodológico, apresenta forte relação com os critérios adotados e os resultados de intervenções em sítios urbanos históricos com envolvimento do IPHAN ao longo de sua trajetória⁶. Resumidamente, o que os estudiosos apontam, é que o modelo atual de intervenção, denominado de modelo globalizado, representa um retrocesso em relação à revisão empreendida na década de 80 pelo IPHAN na preservação de áreas urbanas, quando um movimento revisionista na instituição passou a indicar a que se tomasse como referência o valor documental das cidades patrimoniais em contraposição ao modelo anterior de tratar os sítios históricos, em que as referências visuais imediatas eram exploradas para a construção simbólica do patrimônio urbano brasileiro, vinculando-o às ideias de identidade e autenticidade nacional, perspectiva fortemente vinculada ao período inicial da trajetória do órgão, denominado de período heroico, que corresponde ao período que Rodrigo Melo Franco de Andrade esteve à frente do

instituto, 1937 a 1967.⁷


De acordo com os críticos, a quebra do paradigma do período heroico de intervenções em sítios urbanos históricos se deu com o parecer do arquiteto Luis

Fernando P. N. Franco, de 1984, que defendeu o tombamento de Laguna, Santa Catarina, a partir da concepção de cidade-documento, alicerçada em concepções da nova historiografia difundida pelo movimento da École des Annales.⁸ A tese defendida no parecer é a de que mais do que uma homogeneidade estilística, monumento da arte nacional, valor inexistente no centro histórico de Laguna, o seu tombamento se justificava por representar um documento da formação histórica e urbana do país, expresso pela especificidade natural do sítio escolhido, pela forma urbana assumida em razão de suas particularidades geográficas, e pelo papel desempenhado pelo povoado, em virtude da sua localização, no processo de expansão das fronteiras meridionais do Brasil (FRANCO, 1995).⁹


Vemos, portanto, que o parecer que justificou o tombamento de Laguna não ressaltou aspectos materiais capazes de serem percebidos visualmente e imediatamente pela população local ou por visitantes. Franco (1995), em 1984, defendeu que os valores que justificavam o tombamento de Laguna se relacionavam a conteúdos sociais, geográficos, históricos e simbólicos constituintes do objeto patrimonial material em questão, o Centro Histórico de Laguna/SC. Trata-se, portanto, de valores imateriais relacionados a um bem material, informações que seriam socializáveis capazes de provocar curiosidades, perguntas e hipóteses para a compreensão de Laguna pela população local, regional e nacional, tal qual propõe Chuva (1998).

No entanto, conforme aponta Sant´Anna (1995), o que se verificou no período, dada a complexidade com que o objeto de preservação passou a se apresentar, foi uma lacuna metodológica, evidenciada pela incapacidade do estabelecimento de procedimentos e intervenções que dessem conta do objeto. Pois, a maior aceitação da diversidade estilística e arquitetônica dos conjuntos tombados resultantes desses novos critérios de seleção trouxe como consequência a difícil tarefa de estabelecer critérios de intervenção coerentes com os critérios que justificaram a seleção dessas áreas:

Na prática, contudo, esses pressupostos não chegaram a se disseminar no campo preservacionista, ocorrendo na realidade um descompasso entre os critérios de seleção e os de intervenção. (...) A falta de uma metodologia para se inventariar eficientemente as características de configuração urbana em contexto de grande diversidade, não permitiu o estabelecimento de um equilíbrio entre as visões histórica e estética, favorecendo o prolongamento da contradição entre discurso teórico e atividade prática. (SANT´ANNA, 2000: 4-5)

Verifica-se, portanto, que no Brasil, a crítica de que o modelo globalizado de intervenções representaria um retrocesso, se baseia muito mais como discurso teórico baseado em algumas experiências de seleção de áreas a partir de pressupostos como o que justificou o tombamento (seleção) de Laguna/SC, do que se alicerça em intervenções precedentes consideradas positivas pela crítica ao modelo globalizado.

Entendemos também que essa crítica ecoa a crescente demanda contemporânea por uma ampliação da concepção do que constitui o patrimônio cultural, que se vincula historicamente às ideias de Mário de Andrade, Aloísio de Magalhães e à trajetória de preservação do patrimônio cultural no Brasil e no mundo, que aponta para a necessidade de alargamento do entendimento do que constitui o patrimônio cultural e que desaguou no reconhecimento, valorização e implementação de políticas públicas direcionadas aos aspectos imateriais do patrimônio cultural.¹⁰


O ‘problema’ da relação entre o patrimônio material e imaterial nas ações de preservação do patrimônio cultural edificado no Brasil apresentado até aqui possui dois aspectos que nos interessa distinguir. O primeiro diz respeito à provável ocorrência de conteúdos sociais, simbólicos e afetivos que os objetos patrimoniais carregam, hipoteticamente possíveis de serem socializáveis, conforme aponta a crítica especializada, e em relação aos quais as intervenções baseadas na apropriação cenográfica do patrimônio, não dedicam a atenção requerida pelos críticos. O segundo diz respeito à possível dificuldade metodológica para implementar ações de preservação que levem em conta esses conteúdos, ou seja, a incapacidade de estabelecimento de procedimentos que promovam a socialização desses conteúdos, conforme demandam os críticos.


Diante desse quadro, nosso trabalho propõe-se inserir-se nesse debate através de duas ações que dialogam com os dois aspectos do ‘problema’ apontados acima. A primeira ação dialoga com o primeiro aspecto de forma direta, pois segue a recomendação da crítica especializada de identificação e documentação profunda de um patrimônio cultural edificado, ao investigar a ocorrência e o alcance de conteúdos sociais, simbólicos, afetivos, históricos e arquitetônicos vinculados a um objeto arquitetônico preservado pelo IPHAN. A segunda ação dialoga com o segundo aspecto indiretamente, pois avalia as ações de preservação empreendidas pelo IPHAN em relação ao objeto arquitetônico selecionado em toda sua trajetória de tutela pelo órgão federal, a partir do conhecimento acumulado e sistematizado pela primeira ação.


Do ponto de vista teórico, em relação à primeira ação, a pesquisa que empreendemos baseia-se na noção de documento/monumento, desenvolvida por Le Goff (1984) autor cuja trajetória se vincula á École de Annales.¹¹ O conceito documento/monumento entende que a história deve transformar documentos em monumentos, ou seja, promover a crítica do documento enquanto monumento,o que vale dizer: isolar, reagrupar, tornar pertinente, colocar em relação, constituir em conjunto, através de sua crítica interna, suas condições de produção histórica e sua intencionalidade inconsciente (LE GOFF, 1984:102-103).


Levando essa conceituação para o campo da arquitetura, traduz-se que a arquitetura não é autônoma, reflete acontecimentos históricos da cultura e responde a exigências de uma época. A partir desse ponto de vista, portanto, remete à individualidade dos edifícios, ou seja, “[...] ao acontecimento e ao signo que fixou o acontecimento” (ROSSI, 2001:151). Entendido, portanto, como um signo que fixou um acontecimento, o edifício pode ser visto como uma obra humana inscrita na história, sob a ação dos homens, do tempo e da natureza, e que, se estudada em profundidade, pode fornecer conhecimentos além daqueles imediatamente apreendidos visualmente. Voltar-se à arquitetura, portanto, a partir dessa perspectiva, significa reconhecê-la constitutivamente como fonte de conhecimento, como documento/monumento.


O objeto de estudo, em relação ao qual procuraremos desvelar os conteúdos sociais, simbólicos, afetivos, históricos e arquitetônicos é o Mercado de Diamantina FIG. 01), exemplar de arquitetura popular do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de Diamantina, conjunto tombado pelo IPHAN em 1938, tendo sido o edifício tombado individualmente em 1950.


Figura 01 - Vistas do Mercado de Diamantina

FONTE: Arquivo Programa Monumenta


A escolha desse objeto se dá por algumas conveniências que consideramos

enriquecedoras para a pesquisa: a ausência de estudos aprofundados sobre o edifício¹², o fato de ser um edifício civil de uso público que teve um importante papel no abastecimento da cidade e o fato de sua tutela, a partir de 1938, ser praticamente coincidente com o período de existência do órgão federal de preservação, o que possibilita avaliar as ações de preservação do IPHAN a partir da perspectiva do mercado durante um longo período.


A primeira parte da dissertação, denominada O Mercado de Diamantina na História, busca estabelecer os liames do mercado com o território onde se inscreve na perspectiva conceitual adotada.


Neste sentido, o segundo capítulo, denominado O acontecimento em relação ao qual o mercado é um signo, apresenta, a partir da organização e análise de fontes primárias do século XVIII, fontes cartográficas históricas do XVIII e XIX, e estudos historiográficos regionalizados e especializados recentes sobre a Capitania das Minas nos setecentos, dados que permitem relacionar o Mercado de Diamantina com algumas particularidades da ocupação e abastecimento do território mineiro ainda no setecentos. Dentre as constatações verificadas destacam-se a rede urbana engendrada com uma concentração de serviços de sociedades complexas em um ambiente econômico com grande circulação de riquezas e grande demanda de produtos; o sistema de abastecimento criado para atender essa demanda; a existência de produção agropastoril significativa nas minas setecentistas, desmistificando a ideia de que as mercadorias para o abastecimento das minas no século XVIII eram provenientes quase que exclusivamente de outras capitanias e além-mar e que a circulação de mercadorias se dava predominantemente pelos caminhos régios; a rede de caminhos que levavam às minas e suas particularidades; a extensa rede de caminhos internos à capitania e a ocorrência de variadas e numerosas estruturas de suporte; e os agentes comerciais envolvidos no sistema de abastecimento.


Se no segundo capítulo apresentamos dados que permitem relacionar o Mercado de Diamantina com uma cultura material relacionada ao abastecimento das minas nos setecentos, no terceiro capítulo, Os Caminhos às Minas e suas Estruturas Arquitetônicas no século XIX, foi possível analisar e qualificar algumas estruturas arquitetônicas importantes existentes nos caminhos através de fontes iconográficas e relatos de viajantes do século XIX, e especialmente os ranchos, tipologia arquitetônica em relação à qual o Mercado de Diamantina é um exemplar. Neste sentido, foi possível estabelecer, a partir de um profícuo cotejamento de iconografia e relatos de viajantes do século XIX, como se dava a ocorrências de ranchos, como se estabelecia a relação comercial vinculada ao uso dessas estruturas, que papel desempenhava nas propriedades rurais, quais eram suas variações tipológicas e seus aspectos construtivos típicos, entre outras questões que permitiram estabelecer uma estreita relação dessas estruturas com o Mercado de Diamantina.


Na segunda parte da dissertação, denominada A História do Mercado, tratamos da trajetória do edifício ao longo de sua existência. Neste sentido, o quarto capítulo denominado A Trajetória do Mercado como equipamento urbano, apresenta, a partir de estudos historiográficos recentes alicerçados em fontes primárias, informações sobre o panorama econômico das minas no século XIX, que se configura muito mais dinâmico e diversificado do que aquele apontado pela historiografia tradicional brasileira, baseada na tese dos ciclos econômicos, para quem haveria um hiato entre a crise da mineração e a expansão cafeeira a partir de 1860. O que os dados apontam, e que se relacionam diretamente com a ocorrência arquitetônica que viria a se tornar o Mercado de Diamantina, é que a região já na primeira metade do século XIX apresentava uma produção agropastoril diversificada e um expressivo número de unidades manufatureiras, o que teria proporcionado fluxos interprovinciais e intra-regionais significativos, sustentados por uma cultura material de suporte à produção e ao transporte. Este capítulo apresenta ainda, baseado principalmente em legislações locais e jornais do século XIX, dados de como se davam as concessões para a construção de estruturas semelhantes ao que viria se tornar o Mercado de Diamantina; analisa as primeiras posturas de regulação de funcionamento desses equipamentos urbanos e os dispositivos legais para assegurar a higiene e a tributação; os principais produtos vendidos no mercado e especificidades relacionadas ao seu funcionamento. Apresenta ainda o número de estruturas semelhantes que havia em Diamantina no século XIX e analisa a configuração arquitetônica do Mercado de Diamantina e as características que evidenciam sua filiação tipológica. É apresentada ainda, a data provável de instituição oficial do mercado público em Diamantina e evidências do pensamento higienista na cidade relacionada à demanda popular pela sua demolição.

Finalmente, no quinto e último capítulo, denominado O Mercado como Patrimônio Nacional, é empreendida uma análise detalhada do mercado como objeto de preservação pelo IPHAN. Neste sentido, a partir de dados coletados em arquivos da instituição foram compulsadas e analisadas fotografias realizadas no final dos anos 30 do século XX que permitem caracterizar o mercado e seu funcionamento quando passa a ser tutelado pelo órgão de preservação. Destaca-se a análise e reprodução da carta redigida pela população local direcionada a Getúlio Vargas solicitando a demolição do mercado e a respectiva manifestação de Rodrigo Melo Franco de Andrade em defesa do mercado; a análise das documentações técnicas referentes às obras de restauração que ocorreram entre 1941 e 1943; dos documentos que evidenciam a mudança de uso e a degradação do mercado até os anos 90 quando é realizada a obra em que ele passa a funcionar como centro cultural; e dados e documentação referente a 2008, ano do término da última intervenção arquitetônica sofrida pelo edifício, promovida pelo Programa Monumenta /BID.


 

¹ A esse respeito no Brasil entre outros ver: MOTTA, 2000 & SANT’ANNA, 2004

² A este respeito ver: CHUVA, 1998.

³ A esse respeito ver: CHUVA, 1998, MOTTA, 2000 & SANT’ANNA, 2004.

⁴ A utilização do termo patrimônio imaterial ganhou mais força no Brasil a partir da publicação do Decreto 3.551/2000, que instituiu o Registro dos Bens de Natureza Imaterial. A esse respeito ver: MINC/IPHAN, 2003 & FONSECA, 2005.

Pela Lei n. 378 de 13/01/1937 foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN. Ao longo de sua história foi objeto de diversos arranjos institucionais que acarretaram na mudança de sua denominação. Pelo decreto-lei n. 8.534 de 02/01/1946 foi transformado em Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – DPHAN. Passou a denominar-se Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN através do decreto-lei n. 66.967 de 27/07/1970. O decreto-lei n. 84.198 de 13/11/1979 transformou-o em Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN e a portaria ministerial n. 274 de 10/04/1981 transformou a Secretaria em Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mantendo a sigla. Pela portaria n. 48 de 22/07/1985 voltaria a ser Secretaria e, com a publicação do decreto-lei n. 99.492 de 03/09/1990, é transformada em Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC. Através da medida provisória n.752 de 06/12/1994 o IBPC passa a se chamar Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, denominação mantida até hoje. Nesta dissertação, utilizaremos a sigla em acordo com a cronologia apresentada, contudo, quando não estivermos referindo-nos a um momento marcadamente específico do órgão utilizaremos a sigla atual, IPHAN.

⁶ Entre os trabalhos monográficos que se detiveram na trajetória das ações de preservação urbana no Brasil perpetradas pelo IPHAN ver: SANT´ANNA, 2004 & 1995.

⁷ Sobre a trajetória da política federal de preservação no Brasil e a periodização dessa trajetória ver: FONSECA, 2005 & MEC/SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, 1980.

⁸ Movimento historiográfico francês fundado em 1929, conhecido como École des Annales, que ganhou notoriedade internacional através da revista Annales d´histoire économique et sociale.

Nesse período, além de Laguna-SC, São Francisco do Sul-SC, Corumbá-MS, Cuiabá-MT, PirenópolisGO e Natividade-TO foram selecionadas como áreas de interesse ao tombamento sob argumentação baseada nos mesmos pressupostos.

¹⁰ No Brasil, recentemente, o avanço conceitual do entendimento do que constitui o patrimônio cultural brasileiro, encontra-se expresso no artigo 216 da Constituição Federal. A esse respeito ver: MEC/SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, 1980; MINC/IPHAN, 2003 & FONSECA, 2005.

¹¹ Esta noção é um dos pilares da concepção que norteou o parecer de Laguna/SC e a revisão crítica dos anos 80 em relação a qual a crítica atual aponta que o modelo atual de intervenção representa um retrocesso.

¹² Sylvio de Vasconcellos em seu texto Vila Rica, de 1977, ao justificar sua motivação para o estudo da arquitetura residencial de Ouro Preto, já apontava a prevalência nos estudos da arquitetura monumental: “Desistindo, pois, das obras de caráter monumental, em parte já versadas, julgamos de bom alvitre pesquisar a arquitetura particular que, se por um lado se reveste de menor apuro e riqueza, por outro, por mais ligada ao homem, às suas necessidades e possibilidades está a merecer maior atenção. (...) Especificamente sobre nossa civilização material, os estudos existentes têm preferido os monumentos isolados, principalmente religiosos ou públicos, ainda assim, com precedência de sua história ou das poucas singularidades que apresentam.” A esse respeito ver: VASCONCELLOS, 1977, p. 10

 

1a Parte: O mercado de Diamantina na História


2. O ACONTECIMENTO EM RELAÇÃO AO QUAL O MERCADO É UM SIGNO


A elaboração deste capítulo parte do pressuposto de que a formação de um ambiente territorial – seja ele rural ou urbano – se dá por meio da transformação de espaços em lugares, ancorada nos fatos históricos consecutivos e contínuos ali desenvolvidos ao longo do tempo e na interação das culturas dos homens que, no esforço de modificação e uso da terra, deixam nela vestígios de sua força e criatividade. Nessa perspectiva, a origem do Mercado dos Tropeiros remonta a tempos e espaços que extrapolam os limites diretamente vinculados ao edifício e à cidade onde se encontra implantado.


Neste sentido, este capítulo busca apresentar informações relacionadas a aspectos constitutivos do ambiente onde o mercado se insere na tentativa de evidenciar que as particularidades por nós destacadas a respeito desse território contribuirão para o estabelecimento da complexa rede de relações do mercado, segundo o pressuposto teórico que adotamos: a noção documento/monumento, explicitado na introdução.


Segundo essa noção, o mercado representaria um acúmulo de especificidades que diz respeito principalmente ao abastecimento alimentar e ao comércio em geral, mas também a relações cotidianas e culturais estabelecidas em torno desse aspecto da vida comunal que foi sendo constituído nas Minas desde as primeiras descobertas de ouro, na virada do século XVII para o século XVIII: relações comerciais, determinados produtos e protagonistas que foram modificados ao longo do tempo, entre outras particularidades que serão apresentadas ao longo do capítulo.


2.1. A OCUPAÇÃO E A FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO DA CAPITANIA DAS MINAS


Ao longo do século XVI e XVII, a região das minas teria sido palmilhada por algumas das malfadadas expedições pesquisadoras de minerais preciosos, diretamente promovidas pela metrópole. Entre as principais entradas que palmilharam o território das Minas nos séculos XVI e XVII, destacaram-se aquelas que partiram da Capitania do Espírito Santo, entre elas a de Diogo Martins Cão, de 1596, e a de Marcos de Azeredo, de 1664, ambas buscando, em vão, supostas esmeraldas (HOLANDA, 2007). Porém, o território das Minas Gerais ficaria adormecido em alguma medida para a administração colonial até o final do século XVII, quando ocorreram as principais descobertas auríferas. Até então, a região era registrada nos documentos cartográficos como “um vazio, às vezes preenchido por designações como Brasilia barbarorum ou iluminuras alusivas aos índios antropófagos.” (COSTA, 2004, p.99).

Com a crise do bandeirismo de apresamento, a partir da segunda metade do século XVII, ocorreria a reabertura de picadas no mato grosso (zonas de floresta primitivas). A partir de então, por quase meio século, o homem bandeirante iria percorrer vastas regiões, reintroduzindo o bandeirismo explorador de riquezas. As trilhas abertas passariam a constituir importantes vias para a ocupação dos futuros territórios de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Bahia e Pernambuco, assim como as importantes vias que se definiriam pelo vale do Rio São Francisco (HOLANDA, 2007).


Dentre todas as expedições da segunda metade do século XVII, destaca-se a de Fernão Dias Pais – que partiu de São Paulo em julho de 1674. Sua grande importância na configuração do território mineiro advém, por um lado, por ter explorado, ao longo de sete anos, grandes áreas das cabeceiras do Rio das Velhas até a região do Serro Frio e, por outro, por ter sido chefiada por um grupo de bandeirantes que, anos depois, seriam protagonistas importantes na história antiga de Minas Gerais: Matias Cardoso de Almeida, responsável pela abertura da estrada que ligaria as minas aos currais de gado do Rio São Francisco na Bahia; Manoel da Borba Gato, genro de Fernão Dias, explorador do sertão do Rio das Velhas, descobriria mananciais auríferos e fundaria Sabará; e Garcia Rodrigues Pais, filho de Fernão Dias, responsável pela abertura do Caminho Novo ou Caminho do Garcia, que não passava por São Paulo, encurtando significativamente a distância entre o Rio de Janeiro e a região das minas (COSTA, 2004; HOLANDA, 2007).


Porém, a ocupação definitiva do hinterland¹³ mineiro se daria somente a partir da descoberta de ouro em quantidade e qualidade significativas, por volta de 1693, no Córrego do Tripuí, nas cercanias de onde hoje se encontra a cidade de Ouro Preto. A partir de então, ocorreu uma rápida ampliação da área de incidência de ouro em fontes duradouras e a propagação da notícia teria gerado uma verdadeira corrida do ouro para a região. Segundo memorialistas, como Augusto de Lima Júnior (1978), o movimento migratório teria sido tão grande a ponto de causar um esvaziamento da capitania vicentina e, posteriormente, um desequilíbrio em outras capitanias brasileiras, atingindo até certas regiões de Portugal. O autor cita que em 1709 e 1711, o governo português, alarmado com o despovoamento de certas regiões, mormente do Minho, baixou decretos para coibir a evasão para a região das minas do Brasil (LIMA JUNIOR, 1978, p. 34-35) O relato do padre André João Antonil (1997), que esteve na região das minas em 1699 acompanhando o governador do Rio de Janeiro, São Paulo e das Minas de Ouro, Artur de Sá de Meneses, confirma a invasão do território:

Cada ano vêm nas frotas quantidades de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa. (ANTONIL, 1997, p. 167).

O grande movimento “de toda condição de pessoas” em direção às Minas

marcaria profundamente os primeiros anos do povoamento das terras mineiras, tornando urgentes as providências da Coroa para organizar o território de forma a garantir a arrecadação dos Reais Quintos sobre a extração do ouro. Uma das primeiras medidas foi viabilizar o encurtamento da distância entre a representação mais próxima do poder metropolitano – o Rio de Janeiro – e as áreas de maior incidência aurífera. Nesse sentido, em fins de 1698, atendendo a uma indicação do governador Sá de Meneses, o Rei de Portugal contratou Garcia Rodrigues Pais para proceder à abertura do Caminho Novo, designação recebida em oposição ao já existente que passava por São Paulo. (COSTA, 2004, p.100).


Ainda no final do século XVII, em 1699, seis anos após o ano consignado como a primeira descoberta de ouro¹⁴, Artur de Sá de Meneses, então Governador do Rio de Janeiro, São Paulo e das Minas de Ouro, partira do Rio de Janeiro pelo Caminho Velho, a pedido do rei, sendo que, após noventa e nove dias, sendo quarenta e sete em marcha, chegaria às novas Minas dos Cataguazes, determinando as primeiras normas para organizar o território. Com as informações colhidas na visita, o governador publicaria, em 1702, o primeiro regimento das Minas, que determinava os critérios para a distribuição das datas, nomearia o superintendente das Minas e guarda-mores e trataria exaustivamente da cobrança do quinto, inaugurando definitivamente a presença oficial da Coroa no território mineiro (COSTA, 2004, p. 100).

A partir de então, recairiam sobre o território providências administrativas que, pelas características e principalmente pela velocidade com que foram implantadas, denotam uma precipitação metropolitana em controlar o território. A manifestação dessa atitude se deu tanto pelos sucessivos desmembramentos territoriais¹⁵ quanto pela nomeação, em 1709, de dois ouvidores-gerais das duas comarcas criadas – Ouro Preto e Rio das Velhas (Sabará) – antes mesmo desses núcleos urbanos serem alçados à condição de vilas, o que só ocorreria em 1711.


Uma vez criado o acesso mais rápido, reduzido e subdividido o território, restava à Coroa estabelecer a presença de seus prepostos junto das lavras para garantir a cobrança dos quintos. Isso ocorreu, como de resto em outras capitanias do Brasil, pela elevação de arraiais a vilas, o que trouxe como conseqüência a instalação do Pelourinho e do Senado da Câmara, símbolos do ethos português. Contudo, na Capitania das Minas, os números e a velocidade foram excepcionais (Quadro 1). Até 1720, oito arraiais foram elevados à condição de vila e quatro comarcas haviam sido criadas, Vila Rica, Rio das Mortes, Rio das Velhas e do Serro do Frio. Dessa forma, subdividindo o território, assentando as autoridades e circunscrevendo o exercício de funções civis, judiciárias, militares e religiosas¹⁶, a metrópole buscou controlar o território para viabilizar o principal desígnio da administração colonial, a arrecadação de tributos.

Além disso, cumpre destacar que no período setecentista, a administração colonial no território das Minas apresentou certa complexidade, decorrente não só de questões relacionadas à operacionalidade da economia interna – a eficiência na tributação e a definição de formas efetivas de evitar o contrabando – como também de questões externas, como a flutuação do preço do ouro e diamante no mercado internacional. O conjunto dessas variáveis levou a administração colonial a tomar uma série de medidas, definindo e redefinido as normas constantemente, o que tornaria opressora a vida nas Minas, causando muita insatisfação e revolta.¹⁷


Entre as medidas que denotam a ação contundente da administração colonial em controlar o território para uma eficiente arrecadação, e que por consequência tornariam opressor o ambiente nas minas setecentistas, destacam-se: a implantação de cinco padrões monetários entre 1701 e 1803; as dez modificações na forma do imposto do quinto sobre o ouro entre 1700 e 1751, período que abrange o auge da extração aurífera;18 a instituição de dezessete tributos além da tributação sobre a extração; o estabelecimento de 22 registros de controle em todos os pontos de entradas e saídas dos caminhos régios para as Minas até 1750; e a proibição de abertura de caminhos em 1733 (COSTA, 2004; PAULA, 2000).


Para Paula (2000), a peculiaridade da produção de riqueza das Minas – produção de numerário, ouro em pó e diamante – seria a motivação para a montagem desse aparato opressor de controle e tributação. Segundo o autor, no Brasil colonial, durante os séculos XVI e XVII, teria prevalecido uma presença frouxa do Estado e mesmo uma hegemonia patrimonialista marcada pela forte presença das câmaras municipais.¹⁸ Somente com a descoberta do ouro nas Minas, no final do século XVII, a Coroa Portuguesa iria de fato buscar “impor” a ação do Estado no Brasil, com a implantação de uma maquinaria de controle e espoliação por meio da montagem de amplo aparato estatal para o exercício de um poder discricionário com estrutura jurídica, política e administrativa, cuja expressão máxima seria a Intendência, um órgão burocrático, simultaneamente fiscalizador, judiciário e coletor, diretamente ligada ao poder metropolitano (PAULA, 2000, p. 97-98).


Além disso, a forte presença metropolitana nas Minas nos setecentos foi proporcionada por singular processo de urbanização decorrente de um rápido crescimento demográfico (Tabela 1) e de uma vertiginosa ereção de vilas (Quadro 1) e (FIG. 2). Paula (2000) considera que esse processo não decorreu do volume de riqueza produzida na região. Ressalta, em seu argumento, que a região açucareira, no período colonial, foi mais rica por mais tempo, sem que tenha gerado uma urbanização como a experimentada pela região mineira.


[...] a expansão dos núcleos urbanos em Minas Gerais, no período colonial, está associada a um conjunto de determinantes recíprocos decorrentes, de um lado, do conteúdo e forma da economia mineratória – a) atividade itinerante; b) que exige poucos recursos para sua exploração; c) que não pressupõe concentração de propriedade; d) que dá origem a um produto, ouro/diamante, que é padrão monetário; e) que dá origem a um produto que tem alto valor; f) que dá origem a um produto que tem baixo peso facilitando o transporte. De um outro lado, a atividade mineratória, pelas expectativas que gera de apropriação de renda e riqueza, atraiu populações, cabedais e prestadores de serviços, atraindo também a atenção do Estado que, pela primeira vez, instalará na Colônia o principal de seu aparato de justiça-polícia-fisco. (PAULA, 2000, p. 43-44)

Figura 02 - Trecho do MAPA abrangendo a região entre o alto Rio Doce (Ribeirão do Carmo), Rio das Velhas e Rio Paraopeba. (Região das minas de ouro, 19o - 20o 30’S) Diogo Soares. ca. 1734/5. 19,7 x 32,4 cm; Aquarela; AHU (n. 265/1173) - Fotografi a: Laura Castro Caldas e Paulo Cintra - Projeto Resgate

FONTE: COSTA, 2004: 172


Nesse sentido, a trajetória da civilização urbana de Minas Gerais teria tido o nascedouro dos núcleos urbanos na expansão da exploração aurífera, mas os aspectos que qualificariam a complexa rede urbana criada seriam uma concentração de serviços e uma rede de atendimento de necessidades de sociedades complexas. Uma burocracia civil e militar, uma plutocracia de contratadores, irmandades religiosas, enfim, uma diversificada estrutura ocupacional urbana capaz de gerar demandas e serviços religiosos, jurídicos, comerciais, artísticos, entre outros, que explicaria a razão de muitos artesãos, artistas, oficiais, mestres, músicos, padres, advogados, cirurgiões, atores e professores terem povoado as Minas Gerais nos setecentos (PAULA, 2000, p.46-48).


O que importa realçar, portanto, desse painel das minas setecentistas, no que se refere ao propósito do nosso estudo, é que essa massa populacional, com características de sociedades complexas, que se instalaria nas minas ainda no século XVIII, em um ambiente econômico com grande circulação de riqueza, forjaria um sistema de abastecimento que apresentaria certas particularidades, cujos principais aspectos que se relacionam com nosso objeto de estudo, buscaremos apresentar ao longo do texto.


Entretanto, devido ao fato do Mercado dos Tropeiros encontrar-se implantado no centro de Diamantina, cidade que apresenta particularidades histórica por ter sido sede de um território de exceção na Capitania das Minas, Demarcação do Distrito Diamantino, cabe-nos apresentar brevemente uma contextualização histórica geral, além de interpretações historiográficas mais recentes sobre o Arraial do Tejuco, futura cidade de Diamantina. 2.2. O ARRAIAL DO TEJUCO NO SÉCULO XVIII


A fundação do Arraial do Tejuco não se diferencia, em substância, da fundação de tantos outros povoados que surgiram da mineração em Minas, na passagem do século XVII para o XVIII. Os primeiros descobrimentos de riquezas minerais na região denominada pelos indígenas de Ivituruí (montanhas frias), rebatizada pelos brancos de Serro Frio, ocorreram por volta de 1702, pelas bandeiras de Antônio Soares e Manuel Corrêa Arzão, fundadores de Morro do Pilar, Serro e outras localidades. Com as primeiras descobertas, bandeiras menores se esparramaram pelo território em busca de novos veios auríferos, explorando os pequenos córregos afluentes das principais bacias hidrográficas da região (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1994, p. 260).


De acordo com Joaquim Felício dos Santos (1976), um desses grupos, liderado por Jerônimo Gouvêa, partiu do Serro, em 1713, em direção ao norte, acompanhando o curso do Rio Jequitinhonha até atingir a confluência dos córregos do Piruruca e Rio Grande.¹⁹ Esse grupo teria subido o Piruruca e encontrado ouro em abundância, estabelecendo-se no local. A divulgação da descoberta teria trazido um novo grupo que, chegando na confluência dos córregos, teria subido o Rio Grande até um charco por cima do qual serpenteava um pequeno arroio, que denominaram de Tijuco. Explorando o terreno, encontraram ouro em abundância, estabelecendo-se na margem direita do córrego, em um lugar a que deram o nome de Burgalhau²⁰. Posteriormente a localidade receberia a denominação de Arraial do Tejuco (SANTOS, 1976).


A partir da oficialização da descoberta de diamantes na região do Serro Frio, em 1729, o Arraial do Tejuco tomaria uma trajetória diferenciada em relação a outros povoamentos mineradores das minas setecentistas. Nos primeiros anos após a descoberta oficial – entre 1729 e 1734²¹ – a atuação da administração colonial foi no sentido de conciliar as fortes expectativas metropolitanas em relação à arrecadação decorrente da extração diamantífera, com a realidade das condições de extração local. Nesse sentido, primeiramente foram anuladas todas as datas concedidas para a extração de ouro, foram estipulados quatros valores distintos para o regime de capitação e permitida a lavra de diamantes em apenas dois rios. Essas providências teriam gerado diversos conflitos entre a população e a administração colonial (SANTOS, 1976).


Com o objetivo de obter um maior controle sobre as terras diamantíferas, a coroa criou em 1734 a Intendência dos Diamantes. A Intendência era administrada pela Junta da Administração Geral dos Diamantes, presidida pelo Intendente, apresentando relativa autonomia administrativa em relação à administração da Capitania. Ainda naquele ano foi estabelecido o fechamento da exploração de diamantes e realizada a primeira demarcação das terras diamantinas. A partir de então, o Arraial do Tejuco tornou-se o centro administrativo, econômico e social de um território de exceção no interior da Capitania das Minas, a Demarcação do Distrito Diamantino²² (FIG. 3).

Figura 03- Trecho do [Mapa da] Demarcaçam Da Terra que produz Diamantes. post. 1729. 26 x 33 cm: Aquarela colorida; AHU (n. 247/1153) Fotografi a: Laura Castro Caldas e Paulo Cintra - Projeto Resgate

FONTE: COSTA, 2005:103


A forma mais conveniente para que a Coroa explorasse diamantes no território diamantino foi definida somente em 1739. Naquele ano, ficou estabelecido que o regime de contratos temporários – de quatro anos, por arrematação, em local de exploração predeterminado, com número máximo de seiscentos escravos sob o regime de arrecadação de capitação anual sobre cada um – seria o mais conveniente para a Fazenda Real. O monopólio da extração de diamantes trouxe como conseqüência a necessidade de maior controle do território do que o padrão até então estabelecido para o restante da capitania no século XVIII. Daí se explica a motivação da demarcação das terras. No entanto, ainda assim, a grande riqueza concentrada em uma pedra diminuta, fácil de ser ocultada e transportada, e a vasta extensão das terras diamantíferas, entrecortada por vales profundos e serras alcantiladas, tornaria difícil o controle da extração e do comércio de diamantes.


Para coibir o contrabando, o patrulhamento oficial do território se dava pelos Dragões, mantidos pela administração colonial. Aliavam-se a eles os capitães-do-mato, mantidos pela companhia concessionária. Segundo Santos (1976), qualquer pessoa encontrada nas terras demarcadas que não tivesse ofício ou cargo passava a ser chamada ordinariamente de traficante. Da mesma forma, aqueles que entrassem nas terras demarcadas teriam que ir à presença do intendente dar conta do ofício, negócio ou motivo que o trazia ali, sob pena de serem imputados como traficantes (SANTOS, 1976).


O primeiro contrato iniciou-se no primeiro dia do ano de 1740, sendo que o sexto, e último, findou no último dia do ano de 1771. A partir de 1772, a exploração de diamantes seria realizada com exclusividade pela Real Extração, companhia administrada pela Intendência dos Diamantes. Essa forma de extração perduraria até

1832 (SANTOS, 1976).

Como indica o quadro apontado acima, provavelmente, o ambiente nas terras diamantinas era mais opressor do que em outras regiões da capitania. No entanto, cumpre ressaltar que as memórias do distrito diamantino compuseram um mosaico que serviu de base para construções historiográficas que apontam os tempos da Demarcação Diamantina como uma era de autoritarismo e iniquidade absolutos. Como aponta Laura de Mello e Souza (1999),

[...] boa parte das memórias, como a de Joaquim Felício dos Santos, ou mesmo da melhor historiografia, com é o caso de Caio Prado Jr., reproduziram a imagem de diamantes a engolirem os homens, impedindo qualquer outro tipo de produção e impondo um estado de miséria e anomia social. (SOUZA, 1999: 211)

Estudos mais recentes, no entanto, como de Júnia Furtado (1996), que analisou Diamantina no período do apogeu da Real Extração, entre 1771 e 1808 evidencia o que indica Souza (1999). Ao tomar como ponto de partida a obra de viajantes e historiadores, Furtado (1996) depara-se com duas visões opostas: de um lado, um arraial florescente, com uma camada culta, fina e rica e, de outro lado, uma povoação em decadência, impedida de crescer pelo autoritarismo da administração colonial (FURTADO, 1996, p.39).


Segundo a autora, não teria sido nem uma coisa nem outra. A Comarca do Serro Frio teria apresentado um crescimento constante, passando de cerca de 9 mil habitantes, em 1738, para 60 mil, em 1776. O Arraial do Tejuco, por sua vez, também teria crescido ininterruptamente (FURTADO, 1996, p. 46). Censo dos principais núcleos da demarcação, realizado em 1774, sob a responsabilidade do Intendente dos Diamantes, apurou que, no Arraial do Tejuco, havia 567 moradias na povoação, com aproximadamente 4 mil habitantes. (COSTA, 2004: 117)


Já em relação à composição da sociedade, Furtado (1996) assim a caracteriza:

[...] repetia grosso modo o que ocorria no resto da Capitania: uma classe dominante numericamente limitada e cujo capital disponível era pouco e em geral imobilizado em escravos; uma classe média, mais significativa e de poucos recurso; além dos homens livres pobres e os desclassificados, cuja existência permaneceu registrada na correspondência dos governadores e um numeroso contingente de escravos, que era principalmente alugado à Real Extração. (FURTADO, 1996: 52)

Furtado (1996) aponta, no entanto, que a sociedade tejucana teria conseguido se adequar em torno da administração colonial para obter ganhos e privilégios. Vários indivíduos pertencentes à classe dominante ocuparam cargos e conseguiriam regalias junto à Real Extração. Além disso, como ressalta a autora, o aluguel de escravos à Real Extração foi importante fonte de renda no Tejuco até, pelo menos, a primeira década do século XIX. Entre 1775 e 1795, período do auge da produção diamantina na Real Extração, a Intendência teria gastos elevados, principalmente referentes ao aluguel de escravos, que teria alcançado um contingente entre 4 e 5 mil escravos, revertendo em benefícios para a população, seja pela renda direta seja indiretamente pelo incentivo ao comércio (FURTADO, 1996, p. 64).


No tocante ao controle da produção diamantífera e à contenção do contrabando, a autora demonstra que os potentados locais usaram a máquina administrativa local para benefício próprio, valendo-se da boa posição junto ao poder para disseminar o contrabando.²³ Nesse sentido, embora o aparelhamento do Estado fosse marcadamente repressivo, não foi capaz de estabelecer a ordem, absolutamente, como apontam as construções historiográficas tradicionais, dando margem para o florescimento de iniciativas que dinamizariam o local economicamente e socialmente.


Conclui-se, portanto, que embora o Arraial do Tejuco fosse o centro

administrativo de um território de exceção nas minas setecentistas, não encontramos elementos que apontem para a existência de particularidades que pudessem gerar especificidades no abastecimento desse território em relação ao resto da capitania.

2.3. A CIRCULAÇÃO E O ABASTECIMENTO NAS MINAS SETECENTISTAS


2.3.1. A refutação da tese do sistema colonial e suas implicações para a interpretação do sistema de abastecimento nas minas setecentistas.


A grande invasão populacional que o território das Minas sofreu com as sucessivas descobertas de ouro trouxe como conseqüência o efeito perverso de agudas crises de fome, sobre as quais temos notícias das ocorridas em 1697-1698, 1700-1701 e 1713 (ANTONIL, 1996; ZEMELLA, 1951).


De alguma maneira, esses fatos dramáticos serviram para construções históricas das Minas setecentistas que perduraram até os anos 70 do século XX, onde a descrição dramática de Antonil (1997) foi largamente difundida na historiografia sobre as Minas setecentistas.

Sendo a terra que dá ouro esterilíssima de tudo o que se há mister para a vida humana, e não menos estéril a maior parte dos caminhos das minas, não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineiros por falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão, sem terem sustento. (ANTONIL, 1997, p.169)

Contudo, o próprio Antonil (1997) apresenta informação contraditória ao relatar a presença de roças muito próximas de áreas de incidência aurífera:

E quem segue a estrada das minas gerais da roça sobredita de Manuel Araújo da Ressaca do Campo, vai à roça que chamam de João Batista; daí à de João da Silva Costa, e desta à roça dos congonhas, junto ao Rodeio da Itatiaia, da qual se passa ao campo do Ouro Preto, aonde há várias roças e de qualquer delas é uma jornada pequena ao arraial do Ouro Preto, que fica mato dentro, onde estão as lavras de Ouro. (ANTONIL, 1978, p. 185-186)

De fato, informações primárias atestam que as crises de fome ocorreram. Contudo, a agricultura mercantil-escravista nos territórios mineiros, com vistas ao abastecimento interno da capitania, existiu desde o início da colonização de Minas Gerais, embora a historiografia tradicional dos anos 50, 60 e 70 – de nomes consagrados como Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e, posteriormente, já nos anos 80, Fernando Novais – não tenha feito menção a elas.

Estudos recentes têm demonstrado que a obliteração da existência de produção interna na capitania mineira tem sua origem em um dado dos modelos da historiografia tradicional. Todos apresentam como nota de toque comum a ideia de que não haveria em Minas, como no resto do Brasil durante o período colonial, um mercado interno significativo, mas apenas com características de subsistência, resultado do traço fundamental da economia colonial: a organização da produção e do trabalho (escravista), com vistas à produção de excedente para a metrópole (FURTADO, 1970; HOLANDA, 2003; NOVAIS, 1983; PRADO JUNIOR, 2000):

[...] não se havendo criado nas regiões mineiras formas permanentes de atividades econômicas – à exceção de alguma agricultura de subsistência – era natural que, com o declínio da produção de ouro, viesse uma rápida e geral decadência [...] Houvesse a economia mineira se desdobrado num sistema mais complexo, e as reações seguramente teriam sido diversas. (FURTADO, 1970, p. 84)

Sérgio Buarque de Holanda, no clássico “Metais e pedras preciosas”, chega a concordar com a crença do padre Antonil:

Dentre as atividades produtivas é a lavoura que, de início, ao menos, desperta menos vocações. E isso não só porque oferece menores perspectivas de riqueza; mas também devido à crença então generalizada de que os lugares que dão ouro não hão de dar outra coisa, senão falharia nisto a Divina Providência que distribui equitativamente seus favores e bênçãos. Já dissera Antonil: a terra que produz ouro é esterilíssima de tudo o que se faz mister para a vida humana, e não menos estéril é a maior parte dos caminhos das minas. Por outro lado, a própria Coroa não busca estimular vivamente as plantações, que podem desviar braços da produção principal e mais rendosa para a sua Fazenda. (HOLANDA, V.2, 2003, p. 313)

Prado Júnior (2000) chega a destacar a forte presença da agricultura de subsistência ao longo dos caminhos, referida pelo padre Antonil. Indica, contudo, que a produção era voltada principalmente para a produção de milho para abastecer as tropas de bestas que circulavam com mercadorias pelos caminhos, cujo trânsito, por não ser pequeno, resultaria em uma produção agrícola significativa (PRADO JÚNIOR, 2000, p.162-163).

Até mesmo Zemella (1951), que fez um importante trabalho historiográfico que qualificou o abastecimento da Capitania das Minas no período setecentista, não chega a refutar a tese do “sistema colonial,” chegando mesmo a afirmar que a agricultura nas Minas não teria se desenvolvido até a crise da mineração:

A extração aurífera era absorvente. [...] A agricultura, no apogeu do ouro, não poderia desenvolver-se, porque não podia disputar com as minas na compra de escravos. (ZEMELLA, 1951, p. 234)

Quando a autora trata dos núcleos de produção nas Minas é categórica ao

afirmar que o aparecimento destes teria sido travado por dificuldades de três ordens:

[...] ordem psicológica: o ouro atraía todas as atenções [...] ordem jurídica [...] A metrópole ávida de ouro, sequiosa de quintos, procurava concentrar todas as possibilidades de produção dos habitantes das Gerais na indústria mineradora. [...] ordem geológica: a pobreza dos solos na região das lavras. (ZEMELLA, 1951, p. 232)

Essa visão teria perdurado até meados dos anos 70, quando dois autores apontaram a necessidade de analisar as estruturas internas da colônia em si mesmas, em sua lógica interna, sem a qual a compreensão das relações econômicas com a metrópole ficaria incompleta, insatisfatória. Ciro Flamarion Cardoso (1980) e Jacob Gorender (1978) sedimentariam a tese de que seria impossível a própria reprodução “do antigo sistema colonial” sem a existência de uma economia nativa. A agro-exportação não teria capacidade para se reproduzir se não tivesse como suporte um mercado interno de abastecimento.


A quebra do paradigma dos anos 70 referente à relação colônia/metrópole trouxe, como grande contribuição, uma multiplicação de estudos baseados em fontes primárias sobre a economia endógena colonial, direcionando à regionalização e especialização dos estudos mais recentes. Esses novos dados levantados revelaram uma realidade colonial bem distinta e muito mais complexa e colorida do que aquela que tradicionalmente emergia do cotejo das teorias do sistema colonial.


Representantes dessa inflexão da historiografia setecentista mineira no que tange à questão do abastecimento, Carlos Magno Guimarães e Liana Maria Reis (1986) analisaram 1.247 cartas de doação de sesmarias, que abrangem o período entre 1700 e 1750. Os dados levantados permitem o questionamento das construções historiográficas sobre as características da agricultura mineira setecentista sob vários aspectos. Primeiramente, os levantamentos realizados apontam a existência de produção agrícola próximo às lavras, pois haveria terrenos férteis, objeto de atividades agropastoris, durante todo o período estudado. Os dados indicam ainda que a agricultura apresentou característica escravista ao longo de todo o período estudado e não só a partir da crise da mineração.²⁴ Demonstram, ainda, que a Coroa sabia e não impediu a implantação de engenhos de cana. A ocorrência de unidades produtivas voltadas para o consumo interno e com caráter mercantil ocorreu desde o início da ocupação do território. Além disso, a Coroa teria estimulado a agricultura – vontade expressa não só pelo número de sesmarias concedidas como também pelas condições impostas aos sesmeiros – estabelecendo em média dois anos de prazo para ocupação e produção da terra (GUIMARAES & REIS, 1986, p. 15-27).

Dentre as diversas transcrições de trechos de sesmarias apresentados pelos autores, a Carta de Sesmaria concedida a Bartolomeu Gomes, em 1723, exemplifica a situação dos suplicantes de terras:

Situado no sítio a que chamam Casa Branca, junto do qual se acham algumas terras e matos devolutos que o suplicante quer cultivar plantando neles mantimentos, assim para o sustento dos seus escravos como para o provimento desta Comarca de Vila Rica. (CÓDICE 21, SCAPM, p.170 v. e 171v Apud GUIMARÃES & REIS, 1986, p. 24)

Guimarães e Reis (1986) assim sintetizam a questão relacionada à agricultura nas Minas Gerais no século XVIII:

[...] não é demais reafirmar que a agricultura nas Minas Gerais desde o início teve, parcialmente, caráter escravista e mercantil e que, de nenhuma forma este duplo caráter foi produto da decadência mineradora. O mercado constituído pela sociedade mineira, desde o início, existiu enquanto estímulo para o desenvolvimento da produção interna da capitania. Tendo seu consumo feito parcialmente pela produção interna, as Minas terão que importar o restante. (GUIMARÃES e REIS, 1986, p. 27)

Mas, então, qual seria a relação entre a existência ou não de atividades agropastoris nas Minas setecentistas com o nosso objeto de estudo, o Mercado dos Tropeiros de Diamantina? Primeiramente, o reconhecimento da existência dessas atividades no território da capitania desmistifica a ideia de que o abastecimento das Minas no século XVIII era quase exclusivo de produtos produzidos fora da capitania, especialmente de além-mar, que seriam trazidos por meio dos caminhos régios, principalmente o Caminho Novo do Rio de Janeiro.

Além disso, o que esses dados revelam – e que nos interessa sobremaneira – é que, se existia produção agropastoril nas Minas nos setecentos, havia dois fluxos de produtos para o provimento do mercado consumidor: o dos produzidos na capitania, que receberam a denominação de produtos da terra; e o de produtos importados, advindos de outras capitanias e de além-mar. Isto posto infere-se, portanto, que existia, já no século XVIII nas Minas, uma rede de caminhos internos à capitania, além dos trechos dos caminhos régios. Além disso, uma vez existindo essa rede de caminhos, existiria também uma rede de estruturas de fazendas produtivas, de estruturas de fiscalização e de suporte aos viajantes, estruturas essas que se relacionam com o Mercado dos Tropeiros de Diamantina.


2.3.2. Breve caracterização do sistema de transporte e dos agentes comerciais nas Minas setecentistas


De maneira geral, o desenvolvimento do sistema de comunicação e transporte do período colonial no Brasil acompanhou a progressão do povoamento. Nesse sentido, primeiramente se instalou um sistema litorâneo, cuja expressão foi a navegação de cabotagem e, em um segundo momento, com a interiorização do povoamento, foram abertas as vias para o interior, cujo meio de transporte foi, inicialmente, a marcha a pé e, posteriormente, as tropas de muares. Esse sistema apresentou como peculiaridade tipológica a abertura, após o estabelecimento dos núcleos de povoamento no interior, de novas vias na mesma direção, mas em sentido contrário, buscando o mar por trajetos mais rápidos ou mais cômodos para o escoamento da produção e para a obtenção dos gêneros ao seu abastecimento (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 243).


Particularmente no sistema de comunicação e transporte estabelecido nas minas setecentistas, verificou-se a ocorrência da tipologia descrita acima, pois o território, alcançado inicialmente via São Paulo e, logo em seguida, pelo recôncavo baiano, encontraria outras saídas pelo Rio de Janeiro e, tempos depois, pelo Espírito Santo e sul da Bahia (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 245).


Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1994), até o terceiro decênio do século XVIII, a marcha a pé foi o principal meio de transporte terrestre empregado. As cargas eram levadas nos ombros dos escravos, pois os caminhos – grande parte antigas picadas de índios – não apresentavam dimensões suficientes para o trânsito de cavalgaduras, e as serras, por sua vez, constituíam-se em grandes obstáculos para esses quadrúpedes. O sistema de transporte só viria a passar por notável progresso a partir do segundo quartel

do século XVIII, por volta de 1733, com a introdução dos cavalares e, subsequentemente, com os muares, em larga escala, provenientes na sua maioria da região platina (HOLANDA, 1994, p. 125-129). Trechos do Caminho das Tropas, remanescentes da cultura material que deu suporte a esse comércio, são ainda encontrados na região (FIG 04).²⁵

Holanda (1994) informa sobre a existência de extraordinário comércio de muares na segunda metade do século XVIII, o que indica grande demanda por esse meio de transporte:

Em 1754, segundo documento constante do livro de registro de cartas reais, provisões, procurações, etc. da vila de Parnaíba [...] um tropeiro castelhano, Bartolomeu Chevar, conduziu dos campos rio-grandenses para as Minas Gerais 3780 cabeças de muares. (HOLANDA, 1994, p. 130)

Como aponta Prado Júnior (2000), a introdução dos muares trouxe um progresso notável ao sistema de transporte, relativamente, contudo, ao sistema anterior (marcha a pé), já que, se eram os animais mais adequados a percorrer as estradas acidentadas e a transpor obstáculos naturais formidáveis, como a Serra do Mar e a Mantiqueira, consistiam também em um transporte caro, moroso e de pequena capacidade.

Figura 04 - Remanescentes de muros de contenções de tropas A cultura da criação de gado muar no Brasil criou uma cultura material de suporte cujos vestígios ainda se encontram na região meridional do Brasil. Na imagem vemos remanescentes de muros na região do planalto lageano/ PR FONTE: CURTIS, 2006. p. 172.

O transporte em animais de carga traz problemas peculiares, que pela sua repercussão no comércio e na vida geral do interior merecem ser lembrados. Muito sério é o do volume das mercadorias, que não podem constituir unidades grandes, ou ultrapassar uma meia carga de peso, pois as cangalhas precisam ser igualmente carregadas de ambos os lados do animal. Em consequência, é preciso reduzir ou dividir as mercadorias, quando isto é possível; caso contrário, fica excluída a possibilidade de transporte. (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 267)

As condições das estradas eram outro obstáculo para o pleno funcionamento do sistema. No período das chuvas, os caminhos eram quase intransitáveis, poucos os trechos calçados com pedra, os traçados tinham como critério antes o menor esforço na construção do que o melhor assentamento no terreno. Subidas de serras eram verdadeiras batalhas para os homens e para as bestas (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 267).


A despeito das dificuldades e limitações do sistema de transporte²⁶, a demanda das regiões mineradoras por gêneros teria proporcionado uma expressiva convergência de grande parte do movimento comercial do Brasil, com reflexos no incremento da capacidade produtiva, desde os sertões do Maranhão e Piauí até o Rio Grande do Sul. Nesse sentido, vários autores apontam que o abastecimento das Minas teria gerado a abertura de vias de penetração pelo sertão do Brasil e contribuído para o seu povoamento e desenvolvimento (ZEMELLA, 1951; PRADO JÙNIOR, 2000; HOLANDA, 2003).


O acelerado povoamento da região mineradora e o consequente estabelecimento de sistemas de abastecimento estabeleceram, por outro lado, a definição de agentes comerciais. Claudia Chaves (1999), baseada em suas pesquisas de livros dos principais registros de controle estabelecidos nos caminhos que levavam às Minas, estabeleceu duas categorias de agentes comerciais que transportavam e vendiam suas mercadorias pelos caminhos e nas vilas e arraiais. O primeiro grupo era constituído por aqueles que obtinham suas mercadorias junto aos mercados do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, outros núcleos urbanos, ou produtores rurais e artesãos que se estabeleciam nos caminhos da capitania. Esse grupo era constituído pelo tropeiro, comboieiro, boiadeiro, atravessador, mascate e a negra de tabuleiro. A segunda categoria era representada pelos que compravam e revendiam as mercadorias em estabelecimentos fixos, os vendeiros, os lojistas e os comissários, que eram abastecidos pelos primeiros (CHAVES, 1999, p. 49).

Os mascates e as negras de tabuleiro, agentes comerciais bastante comuns no século XVIII nas Minas, eram vendedores ambulantes. Circulavam livremente pelas zonas mineradoras, eram considerados contrabandistas em potencial pelas autoridades da capitania, razão pela qual estavam sob constante vigilância. Especialmente as negras de tabuleiro (forras ou escravas), por vender alimentos próximos às lavras e faisqueiras, eram frequentemente responsabilizadas pelo desvio de ouro e diamante Os atravessadores compravam gêneros alimentícios dos tropeiros e principalmente dos agricultores, a fim de revendê-los posteriormente aos moradores das vilas ou em suas redondezas. Especulavam com o preço dessas mercadorias, estocando-as para forçar a alta dos seus preços (CHAVES, 1999, p. 56).

Em relação aos boiadeiros e comboieiros, Zemella (1951) aponta a ocorrência desses agentes nos caminhos que levavam às Minas no século XVIII. Sua descrição é bastante reveladora da forma como se dava esse transporte comercial:

As boiadas, constituídas de centenas de cabeças, eram negociadas pelo boiadeiro nas fazendas em cujos portões se fazia a entrega. Os boiadeiros, capatazes e tocadores de gado conduziam-nas ao seu destino, em marcha de três léguas diárias. Os comboios de escravos eram liderados pelos comboieiros. Os africanos iam em grupo de vinte ou trinta fortemente escoltados e presos uns aos outros por correntes. (ZEMELLA, 1951, p. 139)

A autora indica que esse seria um ramo muito especializado da economia. Chaves (1999), entretanto, demonstra, com base nos Livros de Registros de Passagem, que a realidade não era bem essa. Em primeiro lugar, os boiadeiros não transportavam apenas gado, mas também sola, cavalos e potros. Já em relação aos comboieiros, a autora aponta que o transporte e o comércio de escravos não constituíam, na maioria das vezes, um ramo especializado do comércio. Os Livros de Registros revelam que, em alguns deles, as tropas levavam, em um mesmo carregamento, cargas de secos e molhados,²⁷ além de cavalos, bestas e escravos.


A partir de suas pesquisas, Chaves (1999) conclui que os tropeiros foram os principais agentes comerciais do mercado colonial mineiro. Teriam sido os primeiros a circularem pelos caminhos com tropas de muares. Tornaram-se a única alternativa para o transporte de cargas em Minas Gerais, devido ao difícil acesso à capitania. Transportavam cargas dos portos do Rio de Janeiro e de São Paulo para a região mineradora e também compravam e vendiam mercadorias dos produtores rurais dos caminhos das Minas. Ainda segundo a autora, com a estabilização da produção agropecuária e com o abastecimento interno estruturado, os grandes proprietários rurais passaram a contar com suas próprias tropas de muar. Esses proprietários transformaram-se em tropeiros/proprietários de terra, sendo que os grandes encarregavam seus empregados ou passadores do transporte de suas mercadorias, ao passo que os sitiantes e roceiros conduziam eles próprios a sua produção agrícola ao grande mercado consumidor: os povoados, arraiais e vilas (CHAVES, 1999, p. 51-52).


De uma maneira geral, as características do sistema de transporte e dos agentes comerciais das minas setecentistas é a que apresentamos. Veremos, a seguir, quais eram os principais caminhos, como se deu suas aberturas e qual a prevalência de um em relação ao outro.

2.4 A IMPORTÂNCIA RELATIVA DOS CAMINHOS PARA MINAS NO SÉCULO XVIII E XIX


O território das Minas setecentistas era ligado por três caminhos distintos, chamados régios: os Caminhos Paulistas, os Caminhos da Bahia e os Caminhos do Rio de Janeiro, na ordem de abertura. Nenhum deles, contudo, era via única em todos os trechos. Ao longo do tempo, novas vias foram sendo abertas, com o objetivo de buscar melhores passagens em trechos dificultosos, como travessias de serras, rios e áreas alagadiças. Além disso, evidências apontam que uma extensa rede de caminhos internos à capitania teria se formado ainda no século XVIII, além do fato de algumas regiões terem se tornado entroncamento de caminhos.


Dentre as fontes primárias que relatam esses caminhos no século XVIII, destacam-se o itinerário de Glimmer, o relato do Padre Faria²⁸, o relato do padre José Antonil (1997), de Francisco Tavares de Brito (1972) e de um escrito anônimo do século XVIII, de data imprecisa, denominado “Informação sobre as minas do Brasil” (ANONIMO, 1939)²⁹. Tivemos acesso aos três últimos relatos citados, os quais informam principalmente o itinerário dos caminhos, o tempo necessário para percorrê-los e a presença de agricultores, roças e estruturas de suporte.


Uma importante informação complementar aos relatos são os documentos de cartografia histórica dos séculos XVIII e XIX, que permitem visualizar a extensão desses caminhos no território, bem como melhor caracterizar a rede de caminhos que existia.

Finalmente, para complementar a caracterização desses caminhos, os estudos de Zemella (1951) e Chaves (1999), que pesquisaram a circulação de mercadorias por esses caminhos durante o século XVIII, permitem verificar a importância relativa deles no abastecimento das Minas no transcurso do tempo.


2.4.1. Os caminhos paulistas


A abertura dos caminhos paulistas para as Minas remonta às bandeiras que partiram, no século XVII, da Vila de São Paulo do Piratininga, antes das descobertas ocorridas no córrego do Tripuí, e no início do XVIII, quando, após os descobrimentos mais duradouros, um grande contingente de paulistas se deslocou para as Minas.


Antonil (1997) apresenta o roteiro de um caminho que partia da Vila de São Paulo até as Minas Gerais dos Cataguás, passando pela Serra do Itatiaia, onde se divide em dois: um para as minas de Caeté, Ribeirão do Carmo e Ouro Preto e outro para as minas do Rio das Velhas. Levariam pelo menos dois meses de viagem (ANTONIL, 1997, p. 181-183).


Contudo, o conjunto de descrições do século XVIII aponta para a existência de pelo menos três diferentes vias de São Paulo que chegavam às Minas. A mais importante delas seria conhecida como Caminho do Sertão, Caminho Velho de São Paulo ou Caminho de São Paulo para as Minas ou, ainda, Estrada Real do Sertão. Saía de São Paulo, em direção nordeste, passando pela Vila de Mogi das Cruzes, seguia paralela à Mantiqueira pelo Vale do Paraíba, passando pelas Vilas de Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Lorena, cruzando a Mantiqueira por meio da Garganta do Embaú (região de Cruzeiro-SP), e daí em direção aos campos de Minas.


Esse caminho seria também trecho do Caminho Velho do Rio de Janeiro, que partia de Parati, passava pela Vila de Cunha e entroncava-se com o Caminho Velho de São Paulo na Vila de Guaratinguetá. Seria continuidade também dos caminhos provenientes do litoral norte de São Paulo, de Santos e da Vila de Ubatuba (COSTA, 2005, p.78-80).

A segunda via, provavelmente utilizada por Fernão Dias Pais na expedição de 1673, era conhecida como o Caminho de Atibaia ou Caminho do Sapucahy. Partia de São Paulo em direção ao norte, passava por São João de Atibaia, Vila de Bragança e transpunha a Serra da Mantiqueira pelo Vale do Camanducaia.³⁰


A terceira via tomava a direção noroeste, por meio do Vale do Mogi-Guaçu, seguia a direção do Morro do Gravi e ficou conhecida como o Caminho dos Guaianazes (COSTA, 2005, p. 81- 84).


É interessante notar como a abertura de desvios e vias que buscavam regiões de novos achados determinava a ocupação do território e estabelecia as povoações que se tornariam importantes vilas. Na virada do XVII para o XVIII, por exemplo, após cruzar a Mantiqueira, um desvio teria sido aberto, fazendo com que o viajante não mais passasse por Ibituruna, mas por um local denominado Encruzilhada (atual Cruzília).


Esse caminho ficou conhecido como Caminho Real e estendia-se por Traibuba e

Carrancas, indo alcançar o Porto Real da Passagem, entre Tiradentes e São João Del Rei. Por volta de 1702 a descoberta de ouro em um local ao norte, próximo ao porto citado, determinou a criação de uma nova variante, denominada Caminho de Baixo, que levava à área denominada Ponta do Morro, Arraial de Santo Antônio da Ponta do Morro, em 1704, e Villa Real de São José Del Rei, em 1719, atual Tiradentes. (COSTA, 2005, p. 87).


A Carta Corographica da parte da Capitania de S. Paulo que confina com a Capitania de Minas Geraes, em que se mostram as divisões que em diferentes tempos se tem feito entre estas duas Capitanias (FIG. 5), apresenta todas as vias descritas acima, além de caminhos secundários que ligavam vilas desse território e caminhos que seguiam para o norte, em direção às minas de Goiás. Embora tenha sido litografada em 1874, como nos informa Costa (2004), esse mapa data da segunda metade do século XVIII, o que indica a configuração de uma rede de caminhos, vilas e arraiais já na segunda metade do XVIII, a norte e nordeste da cidade de São Paulo até os limites do Rio Grande.


Ao longo do século XVIII, inúmeros outros caminhos com menores amplitudes e restritos a certas regiões foram surgindo ao norte de São Paulo, ao sul e ao oeste de Minas Gerais. Algumas localidades acabariam por tornar-se entroncamento de caminhos, como São João de Atibaia, de onde partiam caminhos para Paracatu, Ouro Fino, Descoberto do Itajubá e Campanha da Princeza (COSTA, 2005).

Figura 05 - Trecho da CARTA COROGRAPHICA da parte da Capitania de S. Paulo que confi na com a Capitania de Minas Geraes, em que se mostram as divisões que em diferentes tempos se tem feito entre estas duas Capitanias. 1874. 47 X 59 cm; Litografi a; NA (4T/MAP.3-42/1) – Fotografi a: Vicente Mello – CRCH.

FONTE: COSTA, 2004:61

O Mappa de toda extenção da Campanha da Princeza, feixada pelo Rio Grande, e pelos registros, que limitão a Capitania das Minas (FIG. 6) apresenta, por abranger área mais restrita que o mapa anterior, as distâncias em léguas e permite melhor visualização dessa complexa rede de caminhos, constituídos por vilas, arraiais, povoados, portos (pontos de travessias de rios) e registros.³¹


Os caminhos paulistas não deixaram de abastecer as Minas durante todo o século XVIII, embora tenham sido obliterados pela historiografia devido à indiscutív